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“A alma é uma presença tímida”, John O’Donohue.

 

 

 

 

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Imagem:  Catrin Welz-Stein, Remember Me.

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Nunca na História recebemos tantos estímulos, informações e impulsos e nunca antes vivemos de forma tão extrovertida. Essa intensa atividade externa, muitas vezes, se constitui num exílio de nós mesmos. Só quando conseguimos estabelecer uma paciente e silenciosa conexão com a beleza do nosso mundo interno profundo, voltamos para casa. Segundo o poeta e filósofo John O’Donohue, recobrar um sentido de valor daquilo que é recatado e misterioso em nós, pode constituir uma forma de começar a restabelecer o ritmo e a linguagem do nosso mundo interno e, com estes, o sentimento de estarmos unidos e pertencermos a nós mesmos.

 

“Em certo sentido, a percepção de sua própria beleza interior tem que ser um tipo de coisa muito íntima. Eu sinto que o segredo e o sagrado são irmãos. E essa é uma das razões pelas quais há tamanha perda do sagrado em nossos tempos e que nosso respeito pelo segredo desapareceu completamente. Nossa moderna tecnologia de informação, computadores e todo o resto deste universo é um dos maiores destruidores de privacidade. Precisamos proteger o que é reservado e profundo dentro de nós. É por isso que, na vida moderna, existe tal carência pela linguagem da alma. A razão mais profunda para isso é que a alma é uma presença tímida. E, às vezes, a carência pela linguagem da alma mostra que a alma foi forçada a recuar para áreas privadas, onde pode se envolver com sua própria textura e ritmo.

Talvez, uma das maneiras de começar a nos conectar com nosso mundo interior mais profundo é recuperar o senso de timidez da alma. Anos atrás, na Irlanda, as pessoas costumavam ser muito tímidas. Eu me lembro, como criança, em casa, que se estranhos chegassem, nós queríamos nos esconder no quarto, porque ficávamos tímidos na frente de pessoas que não conhecíamos. Ainda amo a timidez como qualidade em uma pessoa. Nietzsche costumava dizer, em uma frase inesperada para ele, “Se você quer fazer com que alguém se interesse por sua companhia, uma das melhores maneiras é corar”.

De certa forma, o valor da timidez e seu mistério e reserva são muito estranhos à terrível e impetuosa explicitude de grande parte dos encontros modernos. Se vamos nos conectar com o nível mais profundo de nossas almas, então precisamos perceber que nunca podemos captar a alma através do confronto direto. maneira direta. Em outras palavras, a consciência neon de grande parte da psicologia e espiritualidade moderna sempre nos deixará sem ter tido contato com nossas almas. Vou dar um exemplo.

Eu nasci em uma fazenda. E em uma vida de campo você tem grande respeito ao trabalho que acontece na natureza. Particularmente no escuro submundo da natureza. Por exemplo, você semeia na primavera. E o que você faz na semeadura é entregar as sementes à escuridão do solo. E você deixa o solo fazer o seu trabalho. Bem, digamos que você semeou batatas na terça feira e que você está realmente satisfeito com isso. Na quarta-feira, você encontra alguém que diz: “Eu acho que você espalhou demais batatas e você não terá nenhuma colheita”. Então, na sexta-feira, você desenterra as batatas novamente e as coloca mais perto umas das outras. Então, na segunda-feira seguinte, você muda de ideia novamente e volta ao campo e coloca as batatas mais distantes umas das outras. A questão é que, se você continuar mexendo e raspando o jardim, nunca permitirá que algo cresça, que se desenvolva ou encontre um ambiente nutritivo que que possibilite o surgir de um novo indivíduo.

Em nosso carente mundo moderno, muitas pessoas estão continuamente raspando o barro de seus próprios corações. Eles têm um novo pensamento, um novo plano, descobriram uma nova síndrome, ou descobriram um episodio da sua memória que era negativo. E eles continuaram repetida e implacavelmente esfolando a argila de seus próprios corações. Você não vê árvores, por exemplo, se envolvendo seriamente em análises terapêuticas do seu sistema de raízes e do mundo pedregoso que elas tiveram que evitar em seu caminho até a superfície. Esse tipo de introspecção negativa, que arranha e joga uma luz fluorescente sobre o mundo interno, não permite avançar. Ela mantém muitas pessoas presas por anos e anos e anos e não permite que elas realmente mudem.

Uma das sabedorias do mundo da alma é que você deve permitir que a alma realize seu trabalho secreto na terra fértil da sua vida. E que, talvez, você não conseguirá ver nada por um longo tempo. Pode ser que receba apenas pequenas indicações do crescimento secreto que está realmente acontecendo dentro de você. Mas estes indicativos são suficientes e deveríamos ficar muito satisfeitos. Querer tudo antecipadamente, sob a luz da análise, não é bom, porque você nunca pode antecipar o mundo interior. Talvez a análise seja o caminho errado para abordarmos a nós mesmos.

Acredito, de fato, que precisamos olhar para nós mesmos. Estamos muitas vezes enredados por dentro; às vezes, temos grandes feridas que herdamos e certamente precisamos considerá-las, e precisamos permitir que elas se curem. Muitas vezes me lembro, neste contexto, de uma linda frase de Hegel que disse: “As feridas do espírito se curam e não deixam cicatrizes”. Sinto que há toda uma área de cura esperando por cada uma das nossas feridas. Mas este lugar espera por nós no lado não analítico, oblíquo, indireto de nossas almas.

O que temos que fazer é nos tornarmos conscientes de onde estamos danificados e, então, convidar nossa alma e espírito mais profundos para, em seu belo mundo,  secretamente curar este tecido e essa textura e nos renovar, trazendo-nos de volta à unidade com nós mesmos. Sei que se fizermos isso, vai acontecer. Porque acredito que a expectativa e, certamente, a criativa expectativa curativa trazem toda a luz e a renovação de que você algum dia precisará.“

Tendo por principais temáticas a vulnerabilidade humana e o desejo por uma conexão com a essência da natureza e da vida humana, o pensamento e a poesia de John O’Donohue [01/01/1956 – 04/01/2008] ainda não é extensamente publicado no Brasil. Além de poeta e autor, O”Donohue foi filósofo Hegeliano e padre.  As reflexões acima, a respeito da necessidade de privacidade para o encontro de si mesmo, foram transcritas e traduzidas a partir de uma palestra da coleção “Anseio e Pertencimento” (Longing  and Belonging).

 

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LIMA, A. A. Um elogio à timidez. 2018. Disponível em; <http://www.ressonancias.com/um-elogio-a-timidez>. Acesso em: dia/mês/ano.