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“Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos.” Fernando Pessoa.

 

 

 

 

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Imagem: Christo and Jeanne-Claude 
The Umbrellas, Japan-USA, 1984-91 .

Composto por decifrações dos manuscritos deixados por Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego traz, em seu trecho de número 123, uma lição sobre como discriminar o que importa:

 

“A renúncia é a libertação. Não querer é poder.

Que me pode dar a China que minha alma me não tenha dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.

Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem os escreve. Esse quem os escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver. Somos todos míopes, exceto para dentro. Só o sonho vê com o olhar.

No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas só – o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o que é comum a toda a alma humana e a toda a experiência humana – o céu vasto, com o dia e a noite que acontecem dele e nele; o correr dos rios – todos da mesma água sororal e fresca; os mares, montanhas tremulamente extensas, guardando a majestade da altura no segredo da profundeza; os campos, as estações, as casas, as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as guerras; os deuses, finitos e infinitos; a Noite sem forma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro intelectual que é tudo… Descrevendo isto, ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma primitiva e divina, o idioma adâmico que todos entendem. Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims, os calções dos zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os-Montes? Estas coisas são acidentes da superfície; podem sentir-se com o andar, mas não com o sentir. O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a Catedral nem o Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana. O que nos calções dos zuavos é eterno é a ficção colorida dos trajes, linguagem humana, criando uma simplicidade social que é em seu modo uma nova nudez. O que nas pronuncias locais é universal é o timbre caseiro das vozes e gente que vive espontânea, a diversidade dos eres juntos, a sucessão multicolor das maneiras, as diferenças dos povos, e a vasta variedade das nações.

Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O Universo não é meu: sou eu.”

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Pessoa, Fernando. O Livro do Desassossego, Companhia das Letras.

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LIMA, A. A. O universal, o particular e a transcendência: Fernando Pessoa sobre sobre como ver as essências através dos fenômenos2018. Disponível em; <http://www.ressonancias.com/o-universal-o-particular-e-a-transcendencia>. Acesso em: dia/mês/ano.