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Além do invólucro, o enigma.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       .                                                                                                                                                                                                             .

Adriaen Brouwer, Der Bittere Trank (1637)

O processo de nos tornamos conscientes de nós mesmos é trabalhoso. Emergir da inconsciência e entender quem se é envolve riscos e esforços que têm sido descritos como uma luta heroica para matar um dragão. Não menos arriscado, no entanto, é o retorno à fonte. Em Paixão Segundo G.H., Clarice Lispector descreve uma aventura desta natureza.

Paixão Segundo G.H é um texto primoroso, que merece muito ser lido, mas cujo impacto inclui, também, certo desconforto. Clarice cautelosamente avisa que a sua leitura – como é verdade também em relação aos exames cuidadosos das nossas paisagens internas – só é indicada aos que “sabem que a aproximação do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar”.

“Se a pessoa tiver coragem de largar os sentimentos, descobre a ampla vida de um silêncio extremamente ocupado, o mesmo que existe na barata, o mesmo nos astros, o mesmo em si próprio – o demoníaco é antes do humano. E se a pessoa vê essa atualidade, ela se queima como se visse o Deus. A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima.”(p.100)

Tenho fobia de baratas. Desde criança, quando a casa de madeira em que eu morávamos era infestada por gordas baratas voadoras, cascudas e vermelhas, fui tomada de verdadeiro pavor na presença de uma delas.  E é exatamente em torno do encontro entre uma mulher e uma barata que Clarice constrói algumas das páginas mais transcendentes da literatura brasileira, onde descreve a passagem da tentativa de organizar o mundo à experiência direta da vida.

O contexto da narrativa é banal.  A personagem GH é uma mulher de classe média que, na manhã em que a funcionária foi embora, decide arrumar o quarto de empregada onde, dentro do guarda-roupas, se depara com uma barata. Haveria imagem melhor para aquilo que, nos confins de nós mesmos, vive há milênios e provavelmente viverá por outras incontáveis unidades de tempo, mesmo quando não mais estivermos na face do planeta? Imagem mais adequada (e assustadora) para a primitiva vida que vibra em nossas células?

E aí, o surpreendente acontece: GH se lança, através do inseto, na profundidade de si mesma.  Ao fechar a porta do armário, ela parte em dois a casca rígida da barata e expõe a gosma esbranquiçada de seu interior. Para ter  contato com a “substancia informe do núcleo”, ela transpõe as barreiras do bom senso e do nojo e adentra a comunhão com “tenro neutro” da barata. Desta união improvável, emerge uma meditação/revelação sobre a natureza do amor, dos rituais e da vida:

“Juro que é assim o amor. Eu sei, só porque estive sentada ali e estava sabendo. Somente à luz da barata, é que sei que tudo o que nós dois tivemos antes já era amor. Foi preciso a barata me doer tanto como se me arrancassem as unhas – e então não suportei mais a tortura e confessei, e estou delatando. Não suportei mais e estou confessando que já sabia de uma verdade que nunca teve utilidade e aplicação, e que eu teria medo de aplicar, pois não sou adulta bastante para saber usar uma verdade sem me destruir. (…)

Mas tens medo, sei que sempre tiveste medo do ritual. Mas quando se foi torturada até se chegar ao núcleo, então se passa a demoniacamente a querer servir ao ritual, mesmo que o ritual seja o ato de consumação própria – assim como para se ter o incenso o único meio é o de queimar o incenso.  Ouve: pois estou tão séria como uma barata que tem cílios. Ouve:

Quando uma pessoa é o próprio núcleo, ela não tem mais divergências. Então ela é a solenidade de si própria, e não tem mais medo de consumir-se ao servir o ritual consumidor – o ritual é o próprio processo da vida no núcleo, o ritual não é exterior a ele, o ritual é inerente. A barata tem seu próprio ritual na célula. O ritual – acredita em mim porque acho que estou sabendo – o ritual é a marca do Deus. E cada filho já nasce com o mesmo ritual.

Eu sei: nós dois sempre tivemos medo de minha solenidade e da tua solenidade. Pensávamos que era uma solenidade de forma. E nós sempre disfarçávamos o que sabíamos: que viver é sempre questão de vida e morte, daí a solenidade. Sabíamos também, embora sem o dom da graça de sabê-lo, que somos a vida que está em nós, e que nós servimos.” (p. 116)

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LIMA, A. A. Transcendência em Clarice Lispector: sobre a natureza do amor, dos rituais e da vida., 2017. Disponível em; <http://www.ressonancias.com/transcendencia-em-clarice-lispector-sobre-a-natureza-do-amor-dos-rituais-e-da-vida/>. Acesso em: dia/mês/ano.