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“Este é meu filho somente porque o concebi ou porque o escolhi?”

 

 

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SYLVAIN COULOMBE, Mon être est vide sans mes rêves.

A paternidade mudou muito com os tempos. Pelo lado bom, o contexto social, cada vez menos hierárquico e dogmático, liberou os pais de hoje da rigidez imposta pelo papel tradicional de “chefe de família”. Para essa nova geração, passou a existir a possibilidade de participar de forma mais espontânea e íntima da vida dos filhos.  Desde o começo eles trocam fraldas, dão banho, participam da alimentação. Há uma nova amplitude afetiva, novas formas de vinculação e muito que ser comemorado.

No entanto, como aponta o psicólogo italiano Luigi Zoja, ao lado desta nova proximidade existe, também, um crescimento vertiginoso no número de famílias em que o pai está ausente. Sofre-se falta concreta do pai pessoal, e também o declínio das figuras de autoridade política e religiosa que poderiam servir de metáforas coletivas do pai. Fica um lugar vazio que sinaliza uma crise: o enfraquecimento da figura do pai e da função paterna. Em “O Pai: História e Psicologia de uma espécie em extinção”, Zoja fala sobre o arquétipo do pai e o processo histórico de sua transformação.

O texto de Zoja transita na fronteira entre a vida psicológica e a vida concreta, olhando o mesmo fenômeno ora por um, ora por outro ângulo. A análise da história social mostra o quanto o longo processo de modernização social modificou as relações familiares e de trabalho, deslocando e remodelando a imagem do pai. Não mais o pai terrível, autoritário ou protetor, a imagem contemporânea de pai é o Pai ausente.

o pai cortado grande

 “O pai é uma construção, o pai é um artifício: diferente da mãe, que preserva no campo humano uma condição consolidada e onipresente no que diz respeito a vida animal. O pai é programa – talvez seja o primeiro programa -, é intencionalidade, é vontade e é, assim, autoimposição. Essa artificialidade e, dado seu surgimento “recente”, essa sua pouca experiência, trazem consigo uma desvantagem inevitável. Além das aparências impostas pela cultura patriarcal, quando comparado à mãe, o pai é muito mais inseguro a respeito da própria condição. ”

Por essa insegurança constitucional e pela possibilidade de não reconhecer o filho como seu, a paternidade contém uma ambivalência interna. Ser pai é muito diferente de ser genitor masculino: requer reflexão e implica uma escolha. “Este é meu filho: somente porque o concebi ou porque o escolhi? ”

A esta escolha de abandonar a condição de macho primordial e comprometer-se com a família e os filhos, Zoja chama de “princípio de civilização”. É esse processo cultural, esse princípio de responsabilidade que parece retroceder juntamente com a disponibilidade dos homens de tornarem-se adultos e responsáveis pela nova geração. As gangues – de adolescentes ou não – e ocorrências de estupros coletivos são exemplos correntes de comportamentos regressivos masculinos de caráter destrutivo.

“Dada a íntima contradição que caracteriza não o pai problemático, mas o pai puro e simples, é de surpreender não o fato de que certos capítulos da História tenham terminado mal, mas que a civilização e a História, apesar de tudo, tenham existido. Essa é uma revelação otimista que, no fundo, surpreende e parece confirmar a ideia de que os pais confiáveis, mesmo em sua incerteza constitucional, os pais “suficientemente bons”, tenham sido e permaneçam numerosos. Por bem e por mal, silenciosamente, a história da humanidade foi feita principalmente por esses homens. São eles as formigas da História. ”


No trecho abaixo, algumas considerações de Luigi Zoja a respeito da ausência do pai na sociedade brasileira.

“No Brasil, a gravidade da rarefação dos pais está fora de discussão mesmo porque é difícil dizer qual parcela desse fenômeno é herança da escravidão (onde os filhos nascidos de escravas estavam ligados só à mãe e nenhuma paternidade era reconhecida) e qual depende do fato de a imigração europeia ter sido, em sua origem, quase exclusivamente masculina. Isso paradoxalmente criou uma tradição de famílias sem pai. Os europeus, de fato, tomavam as mulheres indígenas como suas concubinas, mas dificilmente formavam com elas uniões legítimas e estáveis. Com toda probabilidade, o percentual de famílias sem pai foi dramaticamente alto durante toda a história do Brasil. Os últimos estudos indicam que, nas cidades brasileiras da primeira metade do século XIX, cerca de 30 a 40% das famílias tinham uma mulher como chefe.

Hoje na zona metropolitana de São Paulo, as famílias de pele negra e sem pai estão presas a um círculo vicioso que se repercutirá sobre a próxima geração: nas famílias negras de igual pobreza, quando o pai está presente, é mais provável que os filhos estudem, onde ele está ausente, que trabalhem.

O Nordeste brasileiro, em certos aspectos, passou da sociedade colonial às modernas favelas em atravessar verdadeiramente a modernidade. Nos bairros pobres de Recife, foi estuda a condição familiar matrifocal. Entende-se por matrifocalidade uma condição familiar onde o pai não está necessariamente ausente, mas, de todo modo, sua presença não é decisiva: o vínculo entre mãe e filha é forte, ao passo que entre pai e filho é muito fraco; a própria família é apenas materna e todas as decisões importantes são tomadas pela mulher, e assim por diante.

Nas famílias matrifocais de Recife, o pai é uma presença intermitente: ele existe, mas durante certos períodos pode desaparecer. Dentro de casa ele é passivo. A casa é das mulheres: e consequentemente, é também delas o projeto de vida de seus residentes. A vida dos homens, não importa a idade nem que isso seja verdadeiramente posto em questão, acontece fora de casa, em grupo ou à caça de aventuras sexuais. Com o tempo, dentro de uma geração familiar e, de modo mais geral, com o passar das gerações, os homens perdem o controle tanto da casa quanto da própria mulher: “corno” é o insulto mais típico. Arrebatados de volta à Pré-história, de sua condição de pais eles voltam a ser apenas machos. No final, quando a situação econômica da família se consolida e quando talvez os filhos já tenham condições de ganhar dinheiro, as esposas se livram definitivamente dos homens tal como fazem as abelhas com os zangões, os machos parasitas.

A relação entre marginalização e ausência paterna assume aqui uma direção autônoma, inesperada. Pensou-se que a pobreza seria a causa da sua ausência. No entanto, superada a pobreza, o pai não retorna: ao contrário, sua presença é declarada inútil e definitivamente eliminada. É quase obvio dizer que não retorna porque a figura do pai já não existe, pois em seu lugar encontra-se apenas um espaço masculino em branco. Mesmo que provenha de uma cidade brasileira pouco desenvolvida, esse é um exemplo tipicamente moderno. E nenhum outro exemplo da nossa situação moderna revela tão claramente a precariedade animal em sua base, a trágica condição do macho como figura substituível.” (p. 211 a 213).

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LIMA, A. A. Pai, espécie em extinção. 2017. Disponível em; <http://www.ressonancias.com/pai-especie-em-extincao>. Acesso em: dia/mês/ano.

Comments(2)

  • Fernanda M Ribeiro
    16 de agosto de 2017, 08:17

    Muito esclarecedor, fantástico !!

  • ElizabethSandoval
    20 de agosto de 2017, 14:33

    Muito bom Andrea, seu trabalho muito nos enriquece.