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“Tamanha é a importância de uma narrativa bem conduzida. Nela, estão em jogo a vida e a morte. Talvez não passemos de uma história, com um começo e um fim. Mas, nesse caso, quem a conta?”

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Vem dos tempos das cavernas, das noites passadas em torno da fogueira, o gosto por contar e ouvir histórias. Nossa humanidade nasce junto com hábito de narrar o mundo e narrar a nós mesmos. Sabe o que me aconteceu hoje cedo? Não? Então…

A diversão é um dos aspectos para entender esse fascínio ancestral. Sem dúvida, através das histórias experimenta-se o enlevo de grandes aventuras e prazeres imaginários, porém, mais que isso, pode-se ainda ser transportado para fora de uma realidade corriqueira e, muitas vezes, frustrante. Jean-Claude Carrière, grande contador de histórias, aponta que, desde a infância, elas nos propõem contornos para nosso entendimento tanto da vida concreta quanto da imaginada.

círculo dos mentirosos“… é por meio do “era uma vez” que o ato de ir além do mundo, em outras palavras, a metafísica, é introduzida na infância de cada indivíduo, e talvez também na dos povos, a ponto de muitas vezes fazer se aprofundar ali uma raiz tão forte que nos faz tomar nossas invenções humanas, toda nossa vida, por uma realidade que não admite nenhuma discussão. Depois do espanto e do arrebatamento, a história que nos foi contada permanece como a própria base de nossas crenças.”

Amamos as histórias por que nelas nos reconhecemos. No fluxo dos acontecimentos sucessivos, nos identificamos com um personagem ou uma situação e, passamos a viver não só na nossa própria história, mas também naquela que é contada. E esta outra vida (a imaginada) nos afeta e nos modifica. A coletânea O Círculo dos Mentirosos: Contos filosóficos do Mundo Inteiro, de Carrière, é uma delicada homenagem a esse poder que as histórias têm de tocar a alma humana.

Uma bela obra de curadoria, cuja elaboração levou mais de 25 anos, onde o mérito do autor se revela, de imediato, na qualidade e coerência temática das narrativas. A seleção não traz mitos (cujo relato pressupõe uma verdade), nem fábulas (que tem por intensão sugerir determinado comportamento moral). Carrière opta por pequenos contos, de diferentes tradições – sufi, zen, judaica, etc. -, que são transgressores: “chegam no momento apropriado para semear a dúvida, para reforçar ou abalar as leis, para tornar nossas relações familiares e sociais mais refinadas ou pervertidas”.

“De forma prudente, a sabedoria das nações se mostra contraditória. Nelas encontramos tudo e contrário de tudo. Pedra que rola não cria limo e Quem anda por toda a parte por toda a parte aprende; ou A fortuna sorri a quem cedo madruga, A fortuna chega quando estamos dormindo. Todos os provérbios são como luvas. Eles podem ser virados pelo avesso.”

O que é o “Círculo dos Mentirosos”? A longa tradição dos poetas anônimos, menestréis, mascates. Narradores que entenderam que o tecido da ficção é o mesmo que o da vida, e que as histórias são mais importantes que quem as conta. Entre um capítulo e outro, pode-se ouvir um convite sussurrado para fazer parte deste círculo: Vem, as histórias querem ser repetidas! Escuta, elas querem sobreviver através da tua memória! Conta a história do teu jeito e deixa que alma fale através de você.

Os dois contos abaixo foram retirados do livro O Círculo dos Mentirosos, de Jean-Claude Carrière.

Um homem ouvia histórias que um sábio profissional contava e percebia como eram interpretadas ora num sentido ora noutro. Ele reclamou: se é assim, de que serve então contar histórias?

O contador de histórias respondeu:

– Mas é justamente isso que as torna preciosas! Que importância você daria uma xícara na qual só pudesse beber água, a um prato em que só pudesse comer carne? E ainda lembro o seguinte, repare bem: o conteúdo de uma xícara ou um copo é limitado. Que dizer então da linguagem, que parece nos oferecer uma alimentação infinitamente mais farta, rica, mais variada!

Calou-se por um instante, depois acrescentou:

– A verdadeira pergunta a ser feita não é: “Qual o sentido dessa história? De quantas maneiras posso compreende-la? Podemos reduzi-la a um único significado?”. A pergunta é: “Este indivíduo com quem falo pode tirar algum proveito daquilo que vou contar?”

Uma história popular indiana conta que um jovem príncipe, ao galopar através das suas terras, se apaixonou perdidamente por uma jovem camponesa e na mesma hora pediu sua mão em casamento.

Mas o pai da jovem lhe disse:

– Não posso lhe entregar minha filha, pois você não conhece a verdade. Procure-a, encontre-a, volta aqui e lhe darei minha filha.

Sem esperar, príncipe saiu em busca da verdade. Procurou-a nos campos, nas florestas, nas margens dos rios, procurou-a nas cidades e nos desertos. Perguntava:

– Vocês viram a verdade? Vocês a conhecem? Sabem onde poderia encontrá-la?

Por toda a parte lhe respondiam que a verdade não estava ali. Sim, é claro, no passado eles a tinham conhecido, havia passado por aquela cidade ou perto daquele rio, mas em parar, sem se demorar muito. Logo tinha ido embora de novo. Em que direção? Não se sabia ao certo. A verdade estava em outro lugar, mais longe, sempre mais longe.

– Aqui – diziam ao príncipe -, não a conhecemos mais.

Sua busca obstinada e exaustiva durou anos. No fim, esgotado, abatido, já de cabelos brancos, ele sentou-se no topo de uma montanha perto da entrada de uma caverna.

Queria descansar por um momento e estava pronto para a abandonar sua busca.

Ouviu, vindo do interior da gruta, um ruído, uma espécie de grunhido. Levantou-se e se aproximou, com a espada na mão, temendo a presença de alguma fera, de um urso. Conseguiu vislumbrar uma silhueta sombria, que lhe pareceu ser a de uma mulher.

Penetrou na gruta, impregnada de um cheiro fétido. Lá, de cócoras sobre o chão, quando seus olhos se acostumaram com a escuridão, viu realmente uma mulher, velha e feia, coberta de chagas e tumores, enrugada, peluda, fedorenta.

Ergueu na direção dele seus olhos amarelados e perguntou-lhe o que desejava.

– Eu procuro a verdade – respondeu ele.

– Você a encontrou – disse ela.

– Você é a verdade?

– Sim.

– Como ter certeza?

Ela deu as provas que pedia: por exemplo, sabia tudo sobre ele, seu nome, sua idade, sua aventura.

Ele perguntou-lhe:

– Sou o primeiro a encontrá-la?

– Você é o primeiro.

Depois de um momento de espanto, o príncipe acrescentou:

– Fico muito feliz de tê-la encontrado. Vou poder casar com a mulher que amo, se é que ela esperou por mim. Que quer que diga aos homens a respeito de você?

– Não diga nada a eles.

– Mas todos querem conhecê-la! Eles me farão perguntas! Vou precisar contar alguma coisa a eles! Que vou dizer?

Então a mulher repulsiva disse ao príncipe:

– Diga a eles que sou jovem e bela.

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LIMA, A. A. O círculo dos mentirosos: sobre as histórias e a vida, 2017. Disponível em; <http://www.ressonancias.com/bauman-e-o-pensamento-contra-o-medo>. Acesso em: dia/mês/ano.

Comments(1)

  • Maria Luiza Vieira Fava
    13 de fevereiro de 2017, 20:43

    Ótima história, Andrea! Ia dizer: que atual! Mas, desde sempre se distorce a verdade! E há também os diferentes pontos de vista, sobre a verdade. Obrigada!