Identificar a linguagem simbólica daquilo que se apresenta pode ajudar a nortear nossos passos em épocas de pouca visibilidade. Em muitos sentidos, 2016 foi um ano difícil! O cenário econômico, político e social foi, por diversas razões, desanimador. Fomos expostos a diferentes manifestações de desumanidade e decadência. Para os indianos, que têm uma relação mais próxima com o mítico e o simbólico, todos estes eventos formam um padrão reconhecível, sintomas da época em que vivemos: a Kali-Yuga.

O mito conta que a ordem cósmica (dharma) cumpre um ciclo de quatro eras, cada uma de 432.000 anos, que se seguem da mais perfeita a mais caótica. Não é difícil imaginar que nos encontramos atualmente no último período do universo, o degrau mais baixo de organização e consciência. Aqui, o demônio Kali contamina a todos e já não há mais nenhum sábio, nenhum santo, ninguém que fale a verdade e mantenha a palavra. É o anoitecer dos tempos, a derrocada inevitável.

No entanto, mitologia hindu mantem sempre no horizonte a simultaneidade e a sucessão das manifestações conflitantes de energia, de processos que se contradizem e aniquilam reciprocamente. Por um lado, os estudiosos avisam que não devermos confundir este Kali demoníaco com Kali, a deusa. Porém, a própria tentativa de esclarecimento denuncia uma sobreposição, talvez inevitável, entre os personagens de mesmo nome. Kali Maa, a deusa-mãe Kali, está entre as divindades mais adoradas da Índia contemporânea.

Deusa da morte, destruição e ressureição, Kali é expressão da natureza secreta do Deus Shiva, o transformador do universo. Seu nome está associado à escuridão (kali) e ao tempo (kala). Em seu inigualável India, Um Olhar Amoroso  Jean Claude Carrière, a descreve como “aquela de quem as pessoas só se aproximam tremendo”.

Ao considerarmos as crises contemporâneas sob a égide da deusa Kali, o medo que a deusa inspira parece ser justificado. Kali nos força a encarar a dissolução periódica e inevitável de todas as coisas, inclusive muitas que nos são preciosas. Nos rituais indianos, o sacrifício (puja) que é oferecido a Kali tende a ser sangrento, sempre simbólico daquilo que precisamos abrir mão para nos harmonizarmos com o fluxo inexorável da vida e dizer sim a transformações que ultrapassam nossa vontade pessoal. Diferentemente do seu xará demoníaco, no entanto, há na deusa a promessa de uma reconciliação das emoções e da mente com tudo aquilo que existe, até mesmo que parecia ser absurdo e abjeto.

Não é que Kali seja sedenta de sangue, é que nem sempre nos é dado escolher. O sacrifício nos custa, dói, e sangramos. Às vezes, no entanto, um aspecto mais benevolente da deusa nos ajuda a discernir o que precisa ser reciclado em nós para propiciar novos brotamentos. Nestes momentos, se entendemos a necessidade das transformações e nos mantemos o coração aberto, sofrimento se converte em esforço e esperança.

E 2016 foi o ano de qual Kali, o demônio ou a deusa? A diferença está na atitude perante às experiências vividas. Contra os demônios, a tradição recomenda a resistência ativa, a batalha. Já um deus, exige ser honrado, inclusive em suas ambivalências. Na mitologia hindu, a única grande e real transformação se dá na consciência do indivíduo. Vai do olhar que testemunha a vida achar ou não que o princípio destrutivo e o criativo são um só.