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No Gênese, o dilúvio durou 40 dias. Em Macondo, quase 5 anos. Haja paciência para o verão curitibano.

 

 

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RICHTER, Gerhard. As nadadoras, 1975.

Tantos dias de trabalho e tão poucos de folga. Para muitos, são infindáveis as semanas de burocracia cotidiana, que deixam um espaço bem limitado aos preciosos dias de preguiça e desfrute: o sacrossanto tempo das férias. Como todo tempo sagrado é eterno, quando chove nas férias, chove para sempre.

São muitos os poetas e histórias que narram a experiência de sobreviver a uma chuva que se recusa a parar. Um argumento mítico comum, e que não está em desacordo com os dados sobre o aquecimento global, é o de que a humanidade, tendo se tornado muito perversa, arrogante, e incômoda, precisa ser exterminada. Aos que forem poupados, restará a tarefa de reconstruir o que foi dissolvido pelas águas, só que agora de um outro jeito, mais equilibrado e harmônico. Deixando de lado diversas outras versões míticas do dilúvio (ainda que Noé e sua arca fosse leitura mais que adequada para os dias de sapo que vivemos), reproduzimos, abaixo, alguns trechos pluviais do fantástico Gabriel Garcia Marques:

100 anos de solidão“Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. Houve épocas de chuvisco em que todo mundo pôs a sua roupa de domingo e compôs uma cara de convalescente para festejar a estiagem, mas logo se acostumaram a interpretar as pausas como anúncios de recrudescimento. O céu desmoronou-se em tempestades de estrupício e o Norte mandava furacões que destelhavam as casas, derrubavam as paredes e arrancavam pela raiz os últimos talos das plantações.

[…] O ruim era que a chuva atrapalhava tudo e que as máquinas mais áridas brotavam em flores por entre as engrenagens se não fossem lubrificadas de três em três dias, e se enferrujavam os fios dos brocados, e nasciam algas de açafrão na roupa molhada. A atmosfera estava tão úmida que os peixes poderiam entrar pelas portas e sair pelas janelas, navegando no ar dos aposentos.

[…] Numa sexta-feira, às duas da tarde, iluminou-se o mundo com um sol bobo, vermelho e áspero como poeira de tijolo e quase tão fresco como a água, e não voltou a chover durante dez anos. Macondo estava em ruínas. […] Os sobreviventes da catástrofe estavam sentados no meio da rua gozando primeiros sóis. Ainda conservavam na pele o verde alga e o cheiro de cafua que lhes imprimira a chuva, mas no fundo de seus corações pareciam satisfeitos por ter recuperado o povoado em que nasceram. […] Aureliano Segundo perguntou-lhes com a sua informalidade habitual de que recursos misteriosos eles se tinham valido para não naufragar na tormenta, como diabo tinham feito para não se afogar, e um após o outro, de porta em porta, devolveram-lhe um sorriso ladino e um olhar sonhador, e todos lhe deram sem combinação prévia a mesma resposta.

                – Nadando.”  (Garcia Marquez, CEM ANOS DE SOLIDÃO, p. 194-204)

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LIMA, A. A. Garcia Marquez e algumas considerações sobre um verão chuvoso. 2018. Disponível em; <http://www.ressonancias.com/garcia-marquez-e-algumas-consideracoes-sobre-um-verao-chuvoso>. Acesso em: dia/mês/ano.

Comments(1)

  • Fernanda Miranda Ribeiro
    12 de janeiro de 2018, 23:00

    Perfeito